sexta-feira, 3 de junho de 2011

ANDANDO PARA CIMA

IBGE mostra que o Brasil
é um país de grande mobilidade
social mas avisa: muitos sobem
pouco e poucos sobem muito




Os brasileiros entrevistados nesta reportagem não saíram dos livros de auto-ajuda. São gente de carne e osso, homens de barba, barriga saliente, roupa amassada e sapato com marcas de terra. São uma amostra dos 10,5 milhões de chefes de família que chamaram a mulher e os filhos para carregar a trouxa e subir na vida. Após duas décadas de esforço e suor na testa, ajudaram a criar um país melhor. O Brasil já foi o país da miséria rural, de uma vida tão ruim que a distância nem era medida pelo nível de renda, mas pelo patamar diferente de civilização que se observava em um bairro de cidade e em uma colônia de empregados na fazenda do coronel. Ali, longe da cidade, vivia a fatia mais numerosa da população. Esse Brasil mudou. Hoje os pobres do campo são uma fatia que não pára de encolher, dia após dia. A fatia mais larga está no meio, abrigando um povo típico das cidades, com seus pequenos profissionais, motoristas, operários, funcionários de escritório – a chamada classe média baixa. Essa gente encara um cotidiano de dificuldades imensas, mas já venceu o sufoco sombrio e pesado dos andares inferiores.

Conclusão: a população brasileira está em um processo febril de mobilidade. Boa notícia: essa mobilidade ocorre para cima na maior parte dos casos. Na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, PNAD, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE, informa que nada menos de 63% da população mudou de lugar em duas décadas. Num trabalho que compara o país de hoje com o de 1973, os entrevistadores do IBGE saíram a campo, em 1996, para fazer as mesmas perguntas ao mesmo tipo de gente ouvida duas décadas atrás – 42.000 chefes de família, todos homens, empregados, com idade entre 20 e 64 anos. Após três anos desagregando dados, comparando resultados e fazendo projeções, só agora foi possível chegar a números exatos e conclusões claras. Nos dados gerais, o levantamento confirma que no Brasil a mobilidade social é altíssima, comparável à de poucos países, como Austrália e Estados Unidos.

Retirantes: o progresso numa travessia com dor
e sofrimento

Para cada quatro brasileiros que subiram na vida, apenas um caiu, informa o levantamento. Em números exatos, a relação é de 49% para 13%. A pesquisa também chegou a detalhes precisos. Apurou que a maioria só começa a progredir depois dos 30 anos – antes disso está entrando na profissão, ganha mal e tem pouca chance de subir. Em uma revelação surpreendente, o IBGE afirma que a melhor idade para uma arrancada é perto dos 60 anos, entre 55 e 59 – momento da carreira em que o gerente é promovido a diretor e o executivo abre seu negócio.

Desconfie daqueles que reclamam que o Brasil tem novo-rico demais. O que o Brasil tem, em linguagem menos preconceituosa, é rico novo. Há vinte anos, a elite abrigava 3,5% dos chefes de família. Engordou mais de um terço e agora representa 4,9%. Seu clube continua pequeno, mas não é fechado. Atenção: apenas um quinto dos habitantes do topo do edifício social brasileiro já nasceu nesse lugar. Os outros trazem o sangue novo dos andares de baixo. O espetacular é que 20% desses rompedores são filhos de pais que subsistiam na miséria rural. Isso mesmo: gente que vivia com enxada na mão, em palhoça, sem água encanada nem luz elétrica. Na categoria "elite", a pesquisa não coloca apenas os empresários de projeção ou mesmo os homens de muito dinheiro. Incluem-se na classificação os professores universitários, os altos funcionários, os donos de negócios como restaurante e imobiliária. São pessoas que estão no topo, embora não se possa comparar sua condição com a de Antonio Ermírio de Moraes ou a de Olavo Setubal. Esse clube cresce pela educação. Uma pesquisa entre estudantes de ciências sociais mostra que 30% deles são filhos de trabalhadores sem qualificação. Os pais de 11% não sabem ler nem escrever. Um levantamento entre os juízes mostra situação idêntica. Em 1960, apenas 2,5% dos estudantes da Universidade de São Paulo vinham do andar de baixo.

Em um artifício para abrir as entranhas do país numa prancheta de microscópio, a pesquisa dividiu a população em seis faixas. Cada chefe de família encontra seu lugar, ali, a partir de uma equação matemática que combina fatores como a ocupação da pessoa, sua renda no trabalho, os anos de estudo – em comparação com o pai. Com esse método, mede-se o chamado status sócio-econômico das pessoas, apontando seu degrau na escada social. Por razões metodológicas, o levantamento só entrevistou homens responsáveis pelo sustento da casa, deixando de lado as mulheres, que em número cada vez maior garantem a geladeira e a escola dos filhos (veja reportagem).

Ao contrário dos levantamentos sobre inflação, desemprego e popularidade, as pesquisas sobre mobilidade desenham realidades de longo prazo e contam histórias de sucesso que enchem de orgulho seus protagonistas. Filho de uma faxineira, Florestan Fernandes não conheceu o pai, alfabetizou-se com dificuldade, mas tornou-se professor da sociedade paulistana na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Colosso milionário, Olacyr de Moraes morou em casas apertadas de bairros populares e começou a trabalhar numa pequena empresa de caminhões do pai. Intelectuais que imaginaram o Brasil como o país de uma oligarquia imutável passaram décadas tentando provar que os pobres estavam predestinados à pobreza e os ricos tinham lugar assegurado na riqueza. Essa visão nada mais era do que um preconceito.

Ninguém precisa cultivar a ilusão de que é fácil subir. A travessia social não é um passeio recompensado pelo descanso na terra prometida, mas uma caminhada de sacrifício e dor. Tangida pela carência, pela doença, a maioria das pessoas acaba expulsa de onde residia até chegar a um lugar melhor para viver – às vezes, um barraco numa favela, um quarto numa pensão. Os brasileiros de origem pobre que conseguem ascender ao clube dos ricos chamam a atenção pela proeza que realizam. Mas não é fácil chegar lá, obviamente. A chance de um filho de pai muito pobre subir até o topo é de 1,8, contra 98,2. Parece nada, mas já é muita coisa quando se compara a mobilidade social no Brasil com a de outros países. Na maior parte dos casos, ascensão significa chegar a um objetivo mais modesto que a obtenção do sucesso absoluto e definitivo. Conseguir viver com luz elétrica, água encanada e escola para os filhos nas imediações de casa são elementos que traduzem ascensão social para milhões de brasileiros.
Foto: Egberto Nogueira

Balcão de emprego: ascensão social é luz elétrica
e água encanada

Na pesquisa, o IBGE colheu dados objetivos, mas também queria conhecer a opinião de cada entrevistado. Perguntou-se se ele considerava que as chances para subir, hoje em dia, estavam iguais, melhores ou piores que no passado. O resultado é curioso. Embora 49% tenham progredido na vida, apenas 37% disseram que as chances de subir cresceram. Os demais responderam que tudo ficou igual – ou até piorou. Ocorre com a mobilidade social um desses casos de copo com água até a metade – pode estar meio cheio ou meio vazio. Para quem olha de cima, o balanço é positivo, pois mostra que existe muita gente escapando da miséria. Para quem olha de baixo e sente na pele cada gota de suor derramado, é outra coisa. "Somos um país onde muitos sobem pouco e poucos sobem muito", sintetiza o professor José Pastore, que coordenou a pesquisa de 1973 e voltou a campo para conferir os resultados do novo levantamento. (Filho de contador, Pastore formou-se em sociologia pela USP e fez pós-graduação nos Estados Unidos, depois de começar a trabalhar aos 13 anos. As chances de uma história como a sua se repetir são de uma contra vinte.)

"Não se pode ficar ufanista", diz Nelson do Valle Silva, do Laboratório de Análise Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq, o outro coordenador do estudo. "Apuramos um país com grande mobilidade, mas também um país muito desigual." (Filho de médico, Nelson nasceu no topo e ali permaneceu. De cada dez pais do topo, três conseguem manter seus filhos ali.) Os países europeus têm mobilidade muito baixa, mas sua desigualdade é pequena. As pessoas não sobem tanto – entretanto, a cesta básica está resolvida. Austrália e Estados Unidos têm uma mobilidade social imensa. Também são países mais desiguais – mas a diferença nem de longe chega perto do abismo social brasileiro. Sete em cada dez brasileiros circulam entre os três andares inferiores da pirâmide sem conseguir saltar para os andares de cima – e é só a partir dali que está o conforto. Na luta desigual pelas oportunidades, as faixas de baixo freqüentam escolas péssimas, as crianças continuam trabalhando antes dos 14 anos – cada ano de trabalho precoce diminui em 10% as chances de progredir. Distâncias tão grandes tornam ainda mais admirável a ascensão de cada brasileiro, por mais modesta que ela possa parecer aos olhos de quem está de fora.


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